Caio Naressi é cofundador do FotSom e cineasta independente desde 2015. Atualmente realiza um doutoramento em cinema pela Universidade de Montréal onde pesquisa a possibilidade da transcrição da memória autobiográfica em animação.
Já faz algum tempo que tenho encontrado dificuldades em analisar filmes de uma maneira mais íntima. Falar sobre algo que me toca e que me faz ver um filme como um espaço-tempo que se destaca dentro da realidade. Ou seja, algo que tenha sensibilidade o suficiente para escoar a experiência cinematográfica para fora da tela.
Por ora, tenho me aproximado de outras experiências da vida: as dinâmicas sociais e os relacionamentos pessoais. Portanto, as questões que são colocadas no dia a dia não vêm só de personagens que estão presos a uma única performance que durará algum tempo. Todavia, não estou aqui para escrever sobre essas questões, mas sim, para pensar sobre um longa que trouxe uma sutileza que só alguns filmes conseguem.
Moving On (2019, Yoon Dan-bi) é uma história que aparentemente não tem nada grandioso ao primeiro olhar. Não há reviravoltas dramáticas, então não há por que temer os spoilers. Percebemos logo de início tudo que há para acontecer ali, as possibilidades são quase as mesmas que temos em nossas vidas: viver e persistir. No meu caso, não estava mesmo em busca de algo inesperado ou de uma grande avalanche de surpresas para liberar adrenalina. Afinal, estamos altamente dopados e viciados em se anestesiar do quase-nada que acontece em nossas vidas diariamente. Queria mesmo algo suave que me deixasse respirar.
Moving On é justamente sobre esse quase-nada. É também sobre conviver com as mudanças da vida de uma maneira natural. Assisti-lo é como espreitar um cotidiano aparentemente banal em que uma família, composta de um pai e dois filhos, precisa se mudar para a casa do avô por alguma questão que, de início, não é clara. Talvez ao longo da narrativa essa razão também não esteja totalmente às claras, mas conseguimos supor diversas possibilidades, uma vez que os dramas familiares se desdobram lentamente em nossa frente.
Então adentramos repentinamente nesse convívio familiar para começarmos assim a entender o que estamos vendo. Saímos do nosso quase-nada para admirarmos o quase-nada de personagens completamente desconhecidos. E isso me levou a questionar: por que tenho visto filmes nos últimos tempos? Antes, acreditava saber dizer o porquê eu assistia a filmes, agora parece que ficou mais difícil encontrar essa resposta. Por que observar um cotidiano é, de certa maneira, prazeroso? Pode ser a razão pela qual, de certa forma, estamos aprendendo a partir de uma experiência onírica em que perdemos um pouco de nossa consciência e com isso conseguimos lidar com fatos que poderiam nos ocorrer um dia. Uma forma de se preparar para um futuro inesperado, como diz o neurocientista Sidarta Ribeiro. Terá o cinema essa mesma função?
É nas atitudes, por exemplo, de Dongju (Seung-jun Park) que vamos nos questionar sobre situações que são inerentes à nossa vida. São essas atitudes, mas também os olhares dessa garotinha, que nos colocam em paralelo à existência singular dessa personagem, que só sobrevive graças ao cinema. É uma experiência diegética e extra-diegética de nossa própria vida em que assistimos e nos questionamos sobre atitudes e consequências de atos que só se passam no espaço de duas horas. Mas é graças a essa dupla função que estamos analisando nossas vidas de alguma maneira.
Também importa dizer que o longa fala sobre a velhice, a juventude e sobre a ideia de que amadurecer é, de certa maneira, saber conviver com a transição sentimental dos outros. Ou então que essa transição impacta na nossa própria transformação e em como vamos agir diante dos atos da vida, ou do quase-nada cotidiano que nos acomete. A maneira como nós somos afetados por todas essas transformações que a priori não são nossas, mas a posteriori serão. Mudamos o tempo todo e mudamos principalmente ao assistir a pequena Dongju existir nesse espaço-tempo singular que é o cinema.
A solidariedade entre essa família é naturalmente exposta de maneiras muito complexas, já que os personagens sabem de coisas que nós espectadores não sabemos. Por vezes, podemos ter a impressão de que algo de muito errado pode acontecer e toda a dinâmica familiar será afetada (ou é só o vício em adrenalina exercendo seu poder). Entretanto, o filme só nos mostra aquilo que acontece conosco todos os dias: o cotidiano, o simples e complexo estado de vida. E é observando os acontecimentos e suas consequências que podemos então compreender que é nos detalhes que se escondem as transformações mais importantes. Afinal de contas, nossas vidas raramente são episódios em que nos prendemos a uma história cheia de cliffhanger que nos deixarão viciados em algo que, muitas vezes, é só isso: um vício.
Talvez tenha sido esse simples lampejo filosófico que chamou minha atenção nessa história em particular. Não só o fato de voltar a pensar em como os filmes podem nos afetar pessoalmente, sem pensar em suas grandes estruturas narrativas ou planos cinematográficos bem-feitos. Mas simplesmente por me fazer perceber que uma boa estrutura cinematográfica está mais disposta em compreender as sutilezas da vida.
Talvez, como disse logo acima, por estar preso às dinâmicas da realidade em minha vida, ver um longa tão sutil me fez dar valor a tudo que tenho observado ao meu redor de forma tão atenta. Acredito, então, que seja por essa razão que eu ainda persisto no cinema: pois são os filmes que me ajudam a entender a vida.